quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O RIO




Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

Manuel Bandeira
In: "Estrela da vida inteira"



 

NO FIM DO VERÃO




No fim do verão as crianças voltam,
correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem.
Elas, frutos solares:
laranjas romãs
dióspiros. Sumarentas
no outono. A que vive dentro de mim
também voltou; continua a correr
nos meus dias. Sinto os seus olhos
rirem; seus olhos
pequenos brilhar como pregos
cromados. Sinto os seus dedos
cantar como a chuva.
A criança voltou. Corre no vento.

EUGéNIO DE ANDRADE
In Sal da Língua, 1995

AURORA



A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

Adolfo Casais Monteiro

in 'Voo Sem Pássaro Dentro'
(1908-1972)










terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

SAIS PELO SONHO COMO DE UM CASULO E VOAS



Sais pelo sonho como de um casulo e voas.

Com tal leveza podes percorrer o mapa
e ir e vir ao acaso, ar e nome:
como as borboletas.

Não és tu, mas a tua memória com asas.

E abrem-se os palácios,
e percorres os tesouros guardados,
e és sorriso e silêncio
e já nem precisas mais de asas.

Na noite encontras o dia, claro e durável
Voas sobre séculos e horóscopos
Ouves dizer que te amam
como ninguém jamais o poderia confessar.

Não tens idade nem tribo,
nem rosto nem profissão.
Podes fazer o que quiseres com palavras,harpas,almas.

E quando voltas ao teu casulo
já não tens medo nenhum da morte.
E em teu pensamento há néctar e pólen.

Cecília Meireles
In Sonhos

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

LIMITES




Desse caminho escuro
ao dia longe, ao dia
longe, mas sempre dia.
Dessa casa fechada
para sempre, caindo
aos poucos, derrubada
aos repelões do tempo,
ao menos uma flor
seca, num livro inútil.

Da ríspida amargura
da vida incerta e insana,
do respirar da mágoa
no fundo de atroz poço
que de nós mesmos, cegos,
tão cegos! ocultamos,
ao menos uma luz,
mesmo que doentia,
mesmo que vacilante.
Agonizante quase.

Do chão pedrento, sujo,
da solidão maior,
dos olhos assombrados,
das mãos caídas, dos
passos descompassados,
ao menos um arco-íris,
ao menos uma estrela.

Que ao menos nos consolem
esses limites duros
mas cheios de uma estranha
cintilação mais alta,
mas cheios de infinita
espera, e de esperança:
das vísceras ao arco-íris
e do estrume à estrela.


Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

COMO UM EMBALO


Fosse uma chama, crepitaria
sob meus dedos, na solidão.
Nada mais quero, nada queria.
As noites chegam, os dias vão.

Fosse uma chama,breve arderia,
brasa de sonho, na escuridão.
Já nada quero da luz do dia...
Queima uma estrela na minha mão.

Mas nada quero da luz da estrela...
(Chegam as noites, os dias vão.)
Por que sonhá-la, se vais perdê-la,
alma perdida na solidão?



Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo






É


É a manhã da despedida?
A tarde da despedida?
A noite da despedida?

Não: é o que além da vida
pede vida; ou é a vida
que clama por outra vida.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

domingo, 23 de fevereiro de 2014

INSIRO O ROSTO...




Insiro o rosto
entre os ramos de um arbusto
e bebo a delicada fábula
dos fulgores solares

Consumi toda a minha fragilidade verde

Dormi como uma folha
de braços abertos
e passo a passo
subi ao cimo do dia


António Ramos Rosa,
 em Numa Folha Leve e Livre



sábado, 22 de fevereiro de 2014

LYA LUFT



"...
Na relativa lucidez da maturidade veremos que
a maior parte desses "buracos" se tornam menos
funestos quando se constata:
"naquele momento, naquela circunstância, eu fiz
o melhor que podia.
..."

Lya Luft,
in Perdas & Ganhos


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

DOÍDO CORAÇÃO DOIDO



Estive entre mim
e entre mim.


Naufrágios.
Difíceis rimas.
Remos de quebranto.


Ninguém sabe o que é.
O que se sabe não se diz.
O que se diz não se vê.


Doido coração. Doído.
Estoura, estala.


Estigma.



Lindolf Bell
In: O Código das Águas

MINHA PRIMEIRA QUEDA



minha primeira queda
não abriu o paraquedas

daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda

da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda

nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda

na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo


Paulo Leminski
in Toda poesia




quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A MEIO DO CAMINHO,



Fico entre o céu e a terra,
Choro só para dentro.
Sou como a árvore nua
que ao alto os ramos indica:
ergue as asas, mas não voa,
tem raízes, mas não desce.


Alberto de Lacerda
in Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

RETRATO INDIMENSIONAL



Meus pais estão no retrato
sorridentes. O sorriso
é claro e meigo. Entretanto,
bem sei que atrás dessa luz
há tanta dor concentrada!
Uma dor que não se fez
em dois dias, em um mês.
Ai! dor de toda uma vida!

É dor. Mas dor familiar,
feita de coisas miúdas
mais que de grandes desastres:
de pedaços de esperança,
de uma atenção infinita,
da rotina de cuidados
de amor diários —rotina
iluminada!—, de restos
de emoções desencontradas,
de vagos desgostos, vagos
presságios, sonhares vagos,
das precisas incisões
que rasga no rosto a cega,
lenta lâmina do tempo.

Vejo agora como a soma
de tantas dores dispersas,
como essa dor concentrada
alimenta a luz sublime
na sua face estampada.
Vejo-o como nunca o vira
no tempo deles. Agora,
fora do tempo e do espaço,
melhor que no espaço tempo,
melhor do que nunca e sempre,
as nossas luzes se encontram
num doce carinho antigo.

Alheios a tempo e espaço,
meus pais descem do retrato
e vêm conversar comigo.

Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)

LUGAR-COMUM CONSEQÜENTE


Antes da melodia dos anjos,
antes da música das esferas,
a harmonia do silêncio.

Maior que a ambição do todo,
a plenitude do nada.


Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)


AZUL



A infância é o fundo da memória.
Por isto é azul.

Este azul: flor de pétalas agudas,
gravada a ferro-e-fogo sentimento.
Por isto não se apaga.

Esta presença:
projeção de raiz no tempo móvel.

Por isto às vezes dói como uma ausência.



Anderson Braga Horta
Cronoscópio (1983)



terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A SÍLABA




Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo:
uma vogal, uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta.
Só eu sei a falta que me faz.
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.

Eugénio de Andrade
De: Pequeno Formato

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A FESTA DO SILÊNCIO



Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.


António Ramos Rosa,
 in "Volante Verde


PALAVRAS




Nenhum ramo
é seguro. Frágeis
são as palavras.

Albano Martins

CITAÇÃO



"É tempo que o homem cultive o germe da mais
elevada esperança .Eu vo-lo digo:
É PRECISO TER UM CAOS DENTRO DE SI,
PARA DAR À LUZ UMA ESTRELA BAILARINA.
Eu vo-lo digo:
tendes ainda um caos dentro de vós"

- Nietzsche -,
in Assim falava Zaratustra










NÃO DIGAS NADA



Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.


Fernando Pessoa,
in "Cancioneiro"



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

EU NÃO ESTOU TRISTE



"Eu não estou triste.
Só estou fazendo silêncios.
Só estou me recolhendo.
Só estou amanhecendo,
por dentro."

Priscila Rôde

CITAÇÃO



"Enquanto houver um poema pra nos consolar e uma
canção pra nos comover, "a gente vai levando."

Fernanda Mello

O TEMPO



o tempo não tem todo o mesmo peso. há um tempo que abre feridas e
outro que as cicatriza. a impaciência é uma energia inútil e os
heróis são personagens de outro palco. já quis acarear o tempo.
agora só quero ir ao lado dele.

nutro-me de utopias. desabo debaixo de grafias líquidas.
concedo-me o destino das algas. e devolvo-me às marés.
de peito aberto. para ser só coração. vibrante e voraz. vocação
de vaga que explode o beijo na areia.

mas há-de vir o inverno. o frio na pele. o aperto no coração.
a gestação dos diálogos. quentes e doces. aveludada teia que
retorna ao pensamento quando os dias quietos se retocam de
nostalgia. sei então que em algum momento e lugar voaremos em
movimento de asas sincronizado. teremos então a idade do ouro.

Maria José Quintela.

NÓS SOMOS



Como uma pequena lâmpada subsiste
… e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo,

caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos.

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.

ANTÓNIO RAMOS ROSA,
in SOBRE O ROSTO DA TERRA (1961),






terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ANDA O TEMPO



Olha o tempo, caído nessas pétalas
e evaporado nessas vagas nuvens,
olha-o no olhar e no sorriso
em que os belos rostos se desfolham.

Anda o tempo, anda o tempo, o sem-cessar
abrindo flores e fechando pálpebras;
com pés de névoa e de silêncio anda
frutas e corações amadurecendo.

Ouve o passo do tempo como pisa
meu coração, as uvas e os sonhos;
ouve o rio do tempo como cruza
terras floridas, jovens comarcas...

Vem, senta-te à direita de minha alma,
à margem do rio do crepúsculo,
e oponhamos ao tempo, ao inimigo,
a doçura de sermos dois na tarde.



Eduardo Carranza
In: Antologia Poética


PALAVRAS



Aluviões de palavras
corroem as cordilheiras.
Densas nuvens de palavras
limitam os horizontes.
Os batalhões de palavras
concentram as agressões.
Há loucura de palavras
a brotar por entre as pedras
de inumeráveis caminhos.

Ao passarem as palavras,
brilhará, límpido e eterno,
o Verbo esquecido.

1970

Helena Kolody
In: Sinfonia da vida

A CORUJA BRANCA




Em minha casa entre as árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os astros crepitantes
As montanhas descem em direcção ao mar como rebanhos
que não tivessem esperado a licença da aurora para
a migração necessária.
E a erva cresce. E a água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam no caminho danificado pelas chuvas de janeiro.
Um pio atravessa a folhagem murmurante.
A coruja branca, minha irmã sedentária,
vigia na escuridão o mundo abandonado
por tantas pálpebras fechadas.

Lêdo Ivo
in 50 poemas escolhidos pelo autor

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

NÃO ME PEÇAM RAZÕES...



Não me peçam razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.

José Saramago,
em "Os Poemas Possíveis"